Uma Colcha de Retalhos
Comprei no Steam: https://store.steampowered.com/app/772500/Distortions/Página oficial: https://www.amonggiantsgames.com/
É difícil escrever uma resenha desse game. Seria necessário recorrer aos grandes doutores das artes e da semiótica para fazer uma análise minimamente digna de uma obra-prima como essa.
Desde as belíssimas cut-scenes à toda composição dos cenários, a equipe Among Giants recorre a técnicas diversas para compôr uma narrativa bela e surreal. As técnicas utilizadas são tantas e captadas de tantas fontes diferentes que colocá-las em listas seria uma tarefa longa e inútil. Longa porque são de fato inúmeras, inútil porque, ao contrário de jogos saudosistas (como A Lenda do Herói ou Evoland) as sutis alusões que há em Distortions não servem apenas para fazer referências, mas sim para compôr todo um ambiente ou mesmo estruturar a narrativa.
Justamente por recorrer a técnicas diversas, é bastante difícil tentar enquadrar Distortions em um gênero específico. Ele transita entre os gêneros, por vezes assumindo a forma de exploração câmera nas costas, outras vezes terror em 1ª pessoa e outras vezes plataforma com câmera lateral. Em uns momentos ele é tranqüilo como um walking simulator (odeio esse termo), em outros a jogatina passa a ser de tensa e difícil perseguição.
A história em si é completamente aberta para interpretações. Qualquer tipo de sinopse que eu escrevesse aqui, correria o risco de estragar o jogo para aqueles que não gostam de revelações sobre o enredo. Além das cut-scenes, uma boa parte da história é contada através de páginas de um diário que vão sendo encontradas no caminho. De forma bastante sintética posso dizer que uma jovem acorda nesse mundo completamente surreal sem nenhuma lembrança de como ela foi para lá e no caso, boa parte do mistério do game envolve isso.
PRÓS
- Antes de qualquer coisa: é possível configurar os controles. Pode parecer besta, mas quando se é canhoto, ter controles cambiáveis é essencial. O que leva a um outro detalhe: os controles são dinâmicos e responsivos.
- O jogo é muito bem otimizado no sentido de que mudar as configurações de vídeo realmente faz diferença. Também pode parecer besta, mas tem muito game indie que baixar as configurações de vídeo e de áudio só deixam o jogo mais feio, mas não muda em nada na performance.
- Possui uma história incrível e surreal que pode dar pano para manga em interpretações, conversas, discussões, fan-fictions (outro termo que odeio).
- Tanto a jogabilidade quanto a câmera não se prende a um só estilo (como já foi falado): é um jogo de adventure, de ação, de terror, de stealth, de exploração, de plataforma e por aí vai. A câmera pega os três pontos mais comuns: nas costas, lateral e em primeira pessoa.
- É inesperadamente desafiante, mas sem se tornar impossível. Quando a gente começa a jogar, parece que vai ser apenas um adventure de exploração, no entanto surgem diversos momentos de intensa ação em que a gente só consegue passar através de tentativa-e-erro: o que adiciona muita fibra e dinâmica.
- O trabalho de arte visual é fantástico, repleto de cenas espetaculares de deixar boquiaberto. Todo o cenário é muito bonito. Definitivamente é o ponto alto do game.
- Toda a trilha sonora é fantástica: não apenas na ambientação, mas também em dizer ao jogador o que está por vir.
- Um mérito impar, ainda na trilha sonora, de usar músicas licenciadas numa forma pura de ajudar a criar um ambiente sonoro, ao invés de surgirem de forma meramente "diegética" (isto é: através de um programa de rádio que alguma personagem esteja ouvindo). Essa trilha licenciada, obviamente não pode ser comprada com o jogo no Steam, mas se quiser, é possível comprar no Bandcamp da banda. https://labirinto.bandcamp.com (os álbuns utilizados foram Anatema e Kadjwynh).
- Ainda sobre a trilha-sonora. Acho muito bacana por evitar certos clichês, e no caso esse clichê tem nome: orquestra. Virou muito comum em trilhas-sonoras que seja tudo orquestrado. Apesar de eu amar música orquestrada, nem sempre ela produz o melhor efeito no que diz respeito à ambientação. Um outro problema que tenho visto noutros games, no que diz respeito à música orquestrada, é que são repletos de temas esquecíveis. Além disso, visto que o violino tem uma função não apenas na estética, na simbologia, no gameplay, mas também narrativa, o uso de uma trilha-sonora orquestrada me parece óbvio. No entanto foge-se dessa obviedade ao adotar guitarras elétricas e violões de aço para se somar ao violino. Além disso, o tema principal é simples e memorável.
CONTRAS
- Bugs. Antes de dissertar sobre este, quero dizer que o atendimento da Among Giants é excelente. Reportei cada bug e eles parecem estar muito a penhados em corrigi-los. Também não encontrei nenhum bug que tenha crashado o game ou me impedido de alguma forma de zerar. Dito isso: Pois é. Infelizmente têm bugs. Alguns dos bugs simplesmente estragam o clima. Outros deixam as fases bem mais difíceis do que realmente são e esse são especialmente irritantes na última fase. Infelizmente, como o jogo não teve uma boa vendagem, não foi possível investir nessa otimização, portanto alguns bugs chatos ainda continuam. Há poucos momentos em que os bugs realmente me incomodam, alguns estão no chefão (por exemplo: os pontos de salvamento funcionam se eu rodo o game em 1024x768, mas não na minha resolução nativa; e de vez em quando a garota fica correndo sem sair do lugar o que, obviamente, te impede de fugir quando necessário). Um outro bug que realmente me tira do sério está no museu, quando a gente precisa subir numa plataforma que se move e isso acontece:
- A intensa experimentação com a câmera resulta em alguns incômodos, principalmente quando estamos juntos a uma parede, que acredito não ver desde o Play Station One.
- Achei som dos passos da jovem andando no mato irritante o suficiente para colocar como ponto negativo. E como joguei usando fones de ouvidos o som ia no fundo dos ouvidos. Jogando novamente na televisão, o som dos passos ainda continua horrível.
- Por algum motivo achei a escrita um pouco quebrada. Fiquei com a sensação de que o game foi todo escrito em inglês primeiro e depois traduzido. Há algumas palavras que fazem perfeito sentido se usadas em inglês, mas em português, apesar de fazer sentido, não são muito utilizadas, o que dá a sensação de que se trata de uma tradução.
- Por se tratar de um game de exploração na maior parte, deparar com paredes invisíveis (principalmente na água) é broxante.
- Há alguns momentos de plataforma em primeira pessoa que, para ser sincero, não gostei muito, pois no caso desse jogo eu perco a precisão de lugar em que estou e, por isso, erro os saltos diversas vezes e morro por besteira. Não são muitos esses momentos, mas para mim seria melhor se os momentos de plataforma fossem em terceira pessoa.
A fase da jangada em si tem algumas pequenas chatices particulares na minha opinião:
- O mar em si tem um problema meio esquisito: por um lado ele é muito bem feito, possuindo pequenas ondas e tudo mais; por outro a jangada parece atravessá-lo como se não houvessem ondas, ela simplesmente desliza pelo mar como se fosse uma pista de gelo. Servir de exemplo, comparo com outro game indie: Submerged. Em relação ao Submerged (que realmente tem um mar bastante dinâmico) o mar em Distortions é muito muito entediante.
- O controle da jangada, apesar de bastante intuitiva, é também é muito chato. Vai na contra-mão do dinamismo do próprio jogo. Novamente comparo com o Submerged, cuja embarcação é excelente e bem divertida de controlar - o Distorgions está do lado errado. Além disso, na minha opinião, perderam a oportunidade única de permitir o jogador controlar a jangada tocando o violino.
- A sonoplastia do mar também é bastante ruim. Em alguns momentos é perfeita, com sons de vento e ondas quebrando, mas na maior parte o que persiste é um outro som que mais se assemelha a uma corrente d'água (tal como o som de um chafariz ou de uma torneira).
ANÁLISE DA HISTÓRIA
Existem aqui diversos pontos que é possível comparar com Dear Esther e com outro jogo brasileiro chamado Dreaming Sarah. Tanto Distortions quanto Dear Esther e Dreaming Sarah temos esse tema do acidente de carro e esse ambiente estranho e imaginativo que diz mais sobre o estado mental das personagens principais.
Dear Esther é frio, sombrio, introspectivo, amargurado, o personagem principal aprender a ceder, a se desvencilhar dos seus remorsos para conseguir seguir em frente (seja o que for esse seguir em frente). Dreaming Sarah é antes de tudo psicodélico, mimetiza um mundo de sonhos em que tudo parece fazer sentido para quem está sonhando, mas não faz real sentido ao se pensar sobre ele; por vezes é alegre, outras vezes é sombrio como um pesadelo.
Distortions é um mundo de sonhos em que o tempo parece ter parado, por isso é sempre Pôr-do-Sol. Pedras ao redor ficam paradas no ar, como se vítimas de uma brusca força que as levantou e então se detiveram naquela posição quando o tempo parou.
A personagem principal é uma garota cujo nome não é revelado, que acorda em um quarto sem saber quem é e nem onde está. O céu, contudo, nos revela a verdade. Ela está em uma cama de hospital, tomando soro na veia, e tudo o que existem em sua volta é um sonho. À medida que explora o mundo, encontra páginas de um diário de um escritor anônimo, um violino com o qual se vê capaz de mudar o mundo à sua volta tocando notas mágicas e um grande monstro mascarado, preso em grilhões e adormecido.
Ajudada pela escassa lembrança de seu ex-namorado a garota explora esse mundo como quem explora a si mesma e seu sonho varia entre momentos de calma, de lembranças pesarosas e de pesadelos terríveis em que se vê perseguida pelas sombras que existem em seu próprio ser.
Na verdade ela jamais enfrenta essas sombras. Apenas foge delas, como quem foge das más lembranças, aquelas que teimam em surgir na mente quando menos se espera. No entanto, enquanto foge das sombras, ela alcança pontos essenciais de sua memória que lhe fazem lembras tanto das alegrias quanto das tristezas que a cercaram durante a vida. A morte de sua irmã, a entrada numa banda de punk, seu ex-namorado com quem morou junto até que o cotidiano se tornasse insuportável.
Quando se vê preparada, munida da coragem e de todas as notas, ela parte para enfrentar o grande monstro mascarado. A voz do seu namorado lhe encoraja, diz que precisa deixar essas lembranças para trás para que possa seguir em frente enquanto ela sobe a ponte que lhe deixará cara-a-cara com o monstro. Ela toca as notas que acordam esse monstro acorrentado de seu ego, mas como enfrentar algo que é maior que si?
Dessa vez ela já não foge mais. Ou melhor, ela precisa sim correr muito desse monstro destrutivo, mas dessa vez não em fuga, ela o atrai para os pontos em que tocará as notas musicais que lhe permitirão dominar seu monstro. Sim, dominar. Não destruir. Não é preciso destruir esse monstro que existe dentro de si, é preciso domá-lo, é preciso aprender a domar o ego, as lembranças, os remorsos. É preciso ser dono de sua própria casa, ou ao menos tentar ser.
E é isso que ela faz.
Domina o monstro que a persegue. Agora, sobre esse monstro domado, ela empunha seu violino, pronta para explorar esse grande mundo interior.
VEREDITO
Distortions não é perfeito.
Infelizmente existem alguns bugs que podem afetar a jogabilidade (principalmente no chefão) ou tirar do clima em alguns momentos. Além disso a fase do mar é lenta e monótona, o que quebra um bocado a dinâmica da fase anterior. E esse é um comentário partido de alguém que curte jogos lentos. Entretanto, apesar disso não há nada que realmente te impeça de jogar e nada que seja realmente bizarro, portanto na maioria das vezes os bugs são ignoráveis. Além disso, na época do lançamento o o suporte da Among Giants foi excelente, tanto através do fórum no Steam quanto por e-mail. Infelizmente o jogo não gerou a receita suficiente para que fosse economicamente viável continuar corrigindo os bugs, sendo assim o jeito é aceitar o jogo como ele é.
Eu diria que, na verdade, o maior problema foi ele não ter sido feito em Unity ou Unreal. Não entendo patavinas de programação, mas acredito que permitiria diversas coisas que seriam decisivas para uma boa vendagem durante o lançamento: a correção de bugs e a portabilidade para outras plataformas seria facilitada; seria possível adicionar cartas colecionáveis e conquistas.
Se não fossem esses problemas, o jogo seria incrível. Entraria facilmente no meu ranking pessoal dos melhores jogos já feitos. Toda a poética e subjetividade encontrada em Dear Esther é encontrada aqui de uma outra forma.
Retomando aqui o conceito esboçado pelos modernistas brasileiros, tal como Tarsila do Amaral, eu diria que Distortions é um abaporu no campo dos games engole tudo quanto é influência, seja estrangeira ou nacional para "vomitar" algo novo, completamente digerido e misturado. Não posso dizer que sejam essas as inspirações, mas encontro facilmente elementos que me lembram Eric Chahi, Fumito Ueda, Hayao Miyazaki e outros.
A equipe da Among Giants aprendeu observando os melhores. Ponto final. É possível encontrar elementos de tudo o que a História dos jogos já produziu, bem como elementos cinematográficos incontáveis.
Dá pra sentir a paixão dos desenvolvedores.
Tal como o próprio brasileiro, Distortions é uma colcha de retalhos, e quem já dormiu em uma colcha de retalhos sabe: no inverno é a que melhor nos aquece.





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