sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Dear Esther: Análise

Refazendo o refeito


Dois jogos mudaram o meu olhar para os jogos eletrônicos: Shadow of the Colossus, de Fumito Ueda, e Rule of Rose, de Shuji Ishikawa. Antes deles, eu pensava os games como algumas horas de diversão rasa: ligar máquina, vencer as fases, pular as cut-scenes, praguejar nas fases difíceis, me sentir realizado ao matar o chefão, curtir o zeramento e pronto. Não passavam de montanhas-russas, carrosséis do parque que ia buscar algum momento de diversão obsoleta.

Depois desses jogos, passei a pensá-los como obras de arte tal como são os romances, as poesias, os filmes, as pinturas, as peças de teatro e etc. E se os games já não são apenas uma diversão obsoleta, eu preciso exigir deles a mesma qualidade que exijo nos outros meios artísticos. Foi assim que vim a conhecer a obra da dupla Tale of Tales e em seguida essa bela obra de Robert Briscoe.

Via de regra, eu não costumava achar que o jogador médio, demasiadamente acostumado a uma ação cuja única serventia (além de divertir) é divergir a atenção do roteiro cocho, se interessaria em um jogo em que a gente apenas anda por uma trilha, explora uma ilha deserta e ouve uma narrativa; contudo o jogo foi um sucesso de vendas. Acredito que a justificativa disso não está apenas por ter quebrado barreiras ao apresentar uma jogabilidade minimalista: outros já haviam quebrado essa barreira e não conseguiram chegar à ribalta; tampouco acredito que tenha sido por mostrar que games também podem apresentar uma narrativa séria, contemplativa, pensativa e desconcertante, porque outros também já fizeram isso antes. O grande motivo do sucesso do game, na minha opinião, foi ter sido feito quase que junto com a "comunidade gamer".


Começando apenas como um modificador para o Half Life, o game se destacou e recebeu ali, quando ainda era gratuito, um grande suporte dos jogadores. A comunidade abraçou o jogo e quando o jogo foi todo refeito em uma edição comercial, o sucesso foi imediato. Alguns anos mais tarde, o jogo precisou parar de ser vendido. Problemas legais relativos ao motor do game. Com isso, Robert Briscoe resolveu refazer o jogo inteiro em um novo motor e relançar uma versão com toda a parte audio-visual atualizada. O visual está mais bonito, a música foi toda rearranjada e regravada, e o ator de voz que narrou a versão anterior voltou para regravar suas falas antigas e gravar novas.

Comparação entre a primeira edição comercial (à esquerda) e a Landmark Edition (à direita)
Comparação entre a primeira edição comercial (à esquerda) e a Landmark Edition (à direita)
O sucesso de Dear Esther também me mostrou o quanto eu estava errado sobre o que eu acreditava ser o "gamer comum". A idéia de que um jogo experimental é para poucos, desapareceu da minha mente. Hoje eu entendo que todos os jogos são para todos. É lógico que cada público tem suas preferências e que eu preciso respeitá-las, no entanto entendo agora que todos são aptos a apreciar uma obra qualidade ainda que ela fuja do lugar comum. O único esforço que a pessoa precisa desempenhar é abrir-se para a novidade e isso não é complicado.

PRÓS

  • Narrativa. A narrativa é praticamente tudo neste jogo, se não tivesse uma boa, não teria jogo. É uma história sombria, como uma história de fantasmas, mas não é uma história de terror. Por ser semi-aleatória, a cada vez que jogar será uma história ligeiramente diferente.
  • Função poética. Acredito que sejam poucos os jogos cujo trabalho linguagem causa um estranhamento (como postulado por  Viktor Shklovsky) que normalmente só encontramos nas poesias. Esse game trabalha tão bem a função poética da linguagem (Jakobson). A forma como a história é contada faz o jogador-ouvinte consciente da estética da própria linguagem. Tem ritmo, tem uma boa sonoridade. É perfeito.
  • Trilha-sonora. De forma geral, os jogos tem penado nessa área. Por algum motivo a cultura presente hoje nos desenvolvedores é que a trilha sonora precisa apenas de imergir o jogador no jogo. Parece não haver mais tanta preocupação em criar temas memoráveis e, menos ainda, usar a música como um recurso narrativo. Os filmes também tem sofrido desse problema. Felizmente Dear Esther vai na contramão dessa cultura de empobrecer as trilhas sonora e entrega ao jogador uma trilha sonora de qualidade impar, que não apenas cumpre o papel de prender o jogador, mas também apresenta temas memoráveis e ajuda a contar a história. Tal como a própria história, a trilha também evoca metáforas, como logo no início o coro masculino parecendo evocar uma história de fantasmas, e um dos temas de piano é baseado no código morse para o nome da personagem título. Na caverna, momento em que o narrador tem menos fala, a trilha-sonora traz a única voz feminina que se ouve, evocando a própria Esther falando ao personagem. Nesse momento a trilha, ainda que sem palavras, assume o papel narrativo e nos conta esse momento de obsessão e introspecção do narrador. Para a Landmark Edition, a trilha sonora foi completamente regravada com orquestra, excelentes cantoras e cantores, e etc. Diferente de como era na primeira versão comercial, a Landmark Edition não fornece a trilha sonora para ser vendida com o jogo, no entanto pode ser comprada separadamente pelo Bandcamp da compositora.
  • Arte gráfica. Todo o trabalho visual deste jogo já era bastante esmerado na primeira edição comercial. Agora está magnífico. Tal como a trilha sonora, o esmero artístico na parte visual não serve para distrair o jogador da narrativa. Cada área, cada cena é trabalhada a serviço da narrativa.
  • Jogabilidade. Em outros games eu falaria aqui sobre o quanto a jogabilidade é responsiva e tudo mais, aqui - no entanto - o mérito vai para o minimalismo. Não é que os controles não sejam responsivos (muito pelo contrário), mas a verdade é que não há muito o que fazer além de andar e observar. E da mesma forma que acontece em Everyday the same dream, a quase ausência de jogabilidade obriga o próprio jogador a explorar todas as possibilidades que o game tem a oferecer.
  • Comentário dos desenvolvedores. Esse é um aspecto presente apenas na edição Landmark. É muito interessante poder escutá-los explicar de onde vieram as idéias e como eles mesmos interpretam certas metáforas.

CONTRAS

  • Localização. Para ser sincero o jogo é bem localizado. Tem legendas em cinco línguas, mas como é um jogo feito basicamente de narrativa, eu realmente acho que deveria ter mais línguas. Tá bom. Eu estou sendo tendencioso. Tá faltando português, ok? Pronto, falei! Mas tente entender. Mesmo que você seja fluente em uma outra língua, é bem difícil captar metáforas, a menos que você seja nativo nessa língua. Seria um máximo se Dear Esther tivesse legendas em português, e - porque não - mais línguas até! De romeno a japonês! Confesso que consigo até imaginar o Nelson Machado dublando o Nigel Carrington. Para dar o braço a torcer, a primeira versão comercial até foi traduzida por fãs (primeiro para português de portugal e depois adaptada para brasileiro), mas parece que ninguém se interessou em traduzir a Landmark Edition.
disponível apenas para a primeira edição comercial que não está mais sendo vendida.
Tradução feita por fãs. Só para quem tem a versão antiga.
  • Legenda. Sinceramente eu achei que a legenda no Landmark Edition é muito rápida, principalmente se comparada com a da primeira edição, cuja legenda era fixa ao invés de "rolante".

ANÁLISE DA HISTÓRIA

A história se passa em uma ilha Hébrida e é desenvolvida em três camadas ou mais. Essas três camadas se entrelaçam para emocionar e dar nós na cabeça de quem joga:

pretérito mais-que-perfeito, que narra a vida de dois pastores, Donnelly, que narrou em seus diários a história do segundo pastor, Jakobson, que vivera nesta ilha séculos antes, chegando lá na esperança mal sucedida de conseguir formar um legado. Ambos tiveram mortes dolorosas: Donnelly morreu sob a loucura da sífilis e passou seus últimos anos lutando contra as dores de pedra nos rins e viciado em láudano; Jakobson contraiu uma doença das cabras e, enquanto caminhava, caiu em um desses buracos que levam até a cavernas, debateu-se tentando agarrar-se às paredes da caverna rasgando suas unhas até o sabugo tentando voltar à superfície e terminou completamente congelado pelo duro inverno da zona temperada.

pretérito perfeito, em que os eventos que cercam o acidente de carro que levou Esther são narrados.

presente, talvez real, talvez metafórico, talvez metafísico. É o tempo em que nós, no corpo desse homem sem nome, exploramos essa ilha. Ela está completamente inabitada, mas que possui marcas de civilização. Algumas dessas marcas são próprias dos próprios homens que costumavam habitar esta ilha em tempos remotos, como um farol, um casebre, barcos; outras marcas parecem ter sido deixadas pelo próprio narrador, como frases escritas nas paredes com uma tinta azul fluorescente, aparentemente feita a partir dos fungos da ilha, uma armada de barcos de papel e velas acesas.
Outras marcas de civilização, porém, evidenciam, ao menos para mim, que essa ilha não passa de uma metáfora, um construção das alucinações do narrador que agoniza em sua morte. Ou então essa ilha poderia ser metafísica, um purgatório em que sofrer para em fim, livre das culpas e dos pecados, possa sublimar em paz. De qualquer forma, o narrador precisa entrar dentro de si, dos seus pensamentos e memórias para encontrar alguma paz. Tais objetos são alguns que não há justificativa de estarem nessa ilha e que evocam a morte de Esther, como pneus, carros destruídos, ferramentas médicas ensanguentadas, um ultrassom que, provavelmente indica que Esther estava grávida quando morreu.

A próprias velas que encontramos ao longo dos terceiro e quarto capítulos, me transmitem uma idéia de que essa ilha, ao menos no momento em que estamos jogando, não existe de fato, mas que faz parte de alguma alucinação do narrador. Como tantas velas podem estar acesas em um dia que venta tanto? Como elas podem estar acesas dentro de uma gruta fria e úmida? Como uma gruta pode ser tão iluminada sem ter um buraco pelo qual a luz do sol possa entrar?

Penso que em algum momento o narrador esteve de fato nessa ilha, mas no exato momento em que a história se passa, acredito que a ilha seja fruto de alucinações. Ela pode ter sido criada, como o próprio narrador sugere em uma das falas, no momento do impacto da batida dos carros que tomou a vida de Esther. Ou talvez, ele ainda esteja lá na ilha, mas já desmaiado pela infecção de sua perna quebrada e essa infecção que o adoece é a mesma que apodrece tanto a ilha quanto a própria alma. Agora desmaiado, próximo de morrer, o narrador anda mais uma vez pela mesma ilha, agora repleta dos objetos estranhos à ilha, mas que evocam sua esposa e o acidente.

De qualquer forma, fazendo uma alusão à obra de André Dahmer, acredito que a cabeça é a ilha e o corpo é o porto. Preso dentro de sua própria mente, agora privado de qualquer contato com a vida exterior, o narrador precisa revisitar na memória e superar a morte de sua esposa. Ao entrar nas entranhas da ilha, o narrador se aprofunda cada vez mais dentro de si mesmo e lá ele ouve a voz de sua amada soando como se fosse uma brisa que atravessa a caverna e indica o caminho do ar puro. Seu desejo por Esther, o desejo de vê-la novamente, de decifrar sua morte, se torna sua obsessão e passamos a acompanhar um colapso mental do narrador.  
Ainda que não apareçam explicitamente e nem na órdem postulada por Elisabeth Kübler-Ross, o narrador parece atravessar os cinco estágios do luto. Tenho a sensação que o narrador já alucinou diversas vezes nessa ilha sem jamais conseguir se libertar e, desta vez, no momento que a narrativa nos é entregue, vemos a última das caminhadas, aquela que o levará até o alto da torre onde ele aceitará o seu destino fatal e pulará da torre para sublimar pelos ares como uma das gaivotas que já não pousam mais na ilha. Numa última narração as personagens se misturam quando são revelados os sobrenomes de Esther Donnelly e Paul Jakobson; de forma que nós mesmos, jogadores-leitores, passamos a questionar e rever mentalmente toda a narrativa que nos foi entregue. Existem mesmo os pastores Donnelly e Jakobson, ou seriam eles representações imaginárias das personalidades de Esther e Paul?

E no fim das contas, toda essa minha interpretação pode ser revertida a nada. Não passa de cinzas ao vento. Essa interpretação que eu fiz do jogo deriva da última vez que joguei, mas, como inúmeros aspectos do jogo, a narrativa é semi-aleatória e portanto cada pessoa pode ter uma experiência diferente a cada jogatina.

VEREDITO

Não tenho muito mais a dizer. Acredito que tudo já foi dito. Dear Esther é uma obra prima como poucas. O ritmo é lento. O clima é lúgubre e solitário. A paisagem é marcante. A narrativa é sem par. O trabalho musical, na minha opinião, só se compara ao dos jogos da dupla Tale of Tales (cujas trilhas sonoras por si só já são dignas de trabalhos acadêmicos).

Para mim, Dear Esther, é uma peça de arte interativa da maior qualidade.

Poderia estar presa nos museus. Poderia estar presa nas galerias, mas está aí nas nuvens pronta para voar, para ser descer e ser carregada em qualquer computador. Pronta para ser apreciada por qualquer público.

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